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segunda-feira, fevereiro 28, 2005

Cesário Verde, ora lá vamos 

SENTIMENTO DUM OCIDENTAL

I - AVE-MARIAS
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.
E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.
Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

II - NOITE FECHADA
Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.
Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.
E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

III - AO GÁS
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.
Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!
Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.
Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.
"Dó da miséria!... Compaixão de mim!..."
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!

IV - HORAS MORTAS
O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.
Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.
E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.
Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!
Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.
E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.
E os guardas que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

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Primer 

O festival de Sundance validou e o Fantas também. Ou melhor, eu, no Fantas.

O argumento deixa a cabeça em água, graças aos paradoxos das viagens no tempo, especialmente a partir da entrada em cena da (deliciosamente inteligente) "fail-safe machine".

Mas resta todo o realismo na descrição das situações, nos diálogos e na apresentação da cupidez humana, a fluidez da câmara e o trabalho dos actores.

E ainda, sem demagogias: custou USD 7000.

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Ar limpo ou terrorismo? Você decide 

A Comissão Europeia propos-nos recentemente um questionário que se revelou muito interessante (anteriormente disponível para preenchimento on-line em http://europa.eu.int/yourvoice/forms/dispatch?userstate=checked&form=356&lan , cópia digital disponível).

A intenção, promover a participação dos cidadãos no projecto comum europeu, é boa; o tema, incontroverso, com título claro (Poluição atmosférica - "Air pollution - what do you think?"); as primeiras questões, sem nota (avaliação da qualidade do ar na vizinhança, preocupação com o tema, etc.).

Mas, embalado e incauto, chega-se breve à pergunta nº 6 - "Do you think that improving air quality is more important/ equally important/ less important than...", surgindo as seguintes opções:

- taking action to reduce the risk of climate change
- improving the water quality in rivers, lakes and seas
- taking measures to control noise in your neighbourhood
- improving road safety
- generating jobs and reducing unemployment
- fighting against terrorism

Parece-me de louvar que se lembre, mesmo num inquérito, que política é escolha, isto é, que há que tomar e assumir opções no uso dos recursos escassos (dinheiro, atenção, gestão, etc.).

Mas esta listagem o que faz é colocar no mesmo patamar, na mesma equivalência, o combate do terrorismo e o controlo de aviões ou vizinhos ruidosos. Parece-me haver algo de pernicioso em listar no mesmo correr o combate ao terrorismo (que associo, como não?, à defesa dos valores básicos da liberdade, dos direitos humanos, do Estado de Direito, da democracia) e a segurança rodoviária.
Não poderá haver aqui uma leitura errada do que são opções de política a validar pelos cidadãos e algum desejo de sugestionar as respostas?

Pode argumentar-se que o que se pede é exactamente uma hierarquização de prioridades pelo respondente. Mas será intelectualmente honesto sugerir a comparação de importância entre o combate ao terrorismo e a melhoria da qualidade do ar?
Se calhar sim, em segundo pensamento. Ambos são essenciais hoje para a nossa sobrevivência amanhã.

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terça-feira, fevereiro 22, 2005

Dicionário 2 

Sacramento

juramento;
acto religioso, instituído por Deus, para purificação e santificação da alma;
rito sensível e simbólico da religião cristã, destinado a consagrar diversas fases da vida dos fiéis;

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Dicionário 

Eucaristia

Acção de graças;
o Santíssimo Sacramento do altar;
sacramento em que, segundo o dogma católico, o corpo e o sangue de Jesus Cristo estão presentes sob as espécies do pão e do vinho;
as próprias espécies depois de consagradas.

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segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Lágrima no canto do olho 

É o que sinto quando vou votar.
Sinto uma enorme alegria ao ver dezenas e dezenas de pessoas voltar à escola, para participar na vida de todos, para decidir do seu destino comum.

Espero que o voto electrónico venha um dia ajudar a reduzir a abstenção, permitindo que se vote em qualquer local onde se instale um écran táctil, recolhendo o voto dos acamados, facilitando a vida cívica a quem tem deficiências.
Mas espero também que não se chegue a votar maioritariamente por telemóvel ou pela internet, afastando os cidadãos destes momentos (raros) de reunião, de reunião física, em que todos se movem por todos e se olham nesse processo.

Depois, no regresso do voto, começa normalmente a sobressair em mim o sentimento incómodo do sentido da decisão. Mas isso são outras histórias, com outras lágrimas.

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quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Respigadora 

Hoje ouvi uma velha senhora, frente ao Bom Sucesso, pedir para recolher algumas batatas caídas no chão, junto de uma carrinha que vinha abastecer o mercado.
Felizmente, não me pareceu que o fizesse fruto de fome (e espero não estar enganado).
Pareceu-me antes era resultado de uma estrutura interna avessa ao desperdício, um traço de carácter pessoal e geracional.
Concedo que, por vezes, esse pode ainda ser um sinal de pobreza: nos horizontes, se não no bolso.
Mas é também mostra de um tempo em que deitar fora era um acto encarado com mais respeito. Respeito pelos outros que têm menos e pela (poderei dizer?) ordem do mundo.

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sexta-feira, fevereiro 11, 2005

The Flu 

I was down with the flu.

Flu.
Flu. Flu.
Fluuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu.
Fluuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuulululu.

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