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terça-feira, janeiro 17, 2017

Faz até mais sentido 

Um dos problemas com as pretensões sobre reencarnação e o ter vivido vidas passadas é que sobejam as histórias de princesas da corte francesa, oficiais napoleónicos ou pilotos de caça ingleses. É bastante mais raro ouvir-se falar de criadagem, soldados rasos ou presos comuns.

Mas então ocorreu-me. Se este mundo não é propriamente justo, por que razão haveria o próximo de o ser? Se calhar, só mesmo os privilegiados têm direito a reencarnar.

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segunda-feira, janeiro 16, 2017

It's all so quiet 

Tão calmo que fiz festas à Lia só para a ouvir ronronar.

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segunda-feira, janeiro 09, 2017

Teste americano 

Somos um pedaço de pó no meio de um universo gigantesco para além do imaginável, de uma total irrelevância;
ao mesmo tempo, a estrutura mais básica da física parece ter afinado uma meia dúzia de variáveis fundamentais exactamente com o ajuste milimétrico que permite a existência;
por outro lado, somos estruturalmente inadequados, incapazes de compreender essa mecânica, a física quântica ou a matemática que equaciona a soma de todos os números inteiros a -1/12...

Talvez seja a única maneira, um constante esforço de quadrar o círculo. Na realidade, é igualmente impossível e impensável que algo possa ser ou não ser, que o tempo possa ter começado ou ter existido desde sempre, que o universo tenha ou não tenha significado.

Talvez a única resposta concebível seja "todos os anteriores".

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sexta-feira, janeiro 06, 2017

Sombra 

É difícil pensar separadamente na Rosa; é difícil dar-lhe a total individualidade de uma pessoa, da mesma forma que não é fácil pensar a sua ausência.
Ela esteve sempre lá, sem ser - sem poder ser - só ela. Como uma sombra, uma nossa sombra, acompanhou-nos nessa forma toda a vida.

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terça-feira, janeiro 03, 2017

Quarto de banho da Rosa 

Ao lado do Quarto da Rosa, que dava para a cozinha, havia um pequeno quarto de banho.
Tinha direito a lavatório e sanita, com uma janelinha por cima. De alguma forma, devia ser ainda possível tomar um chuveiro mas nunca percebi como.

Era recoberto no chão e paredes por azulejo branco, brilhante e com muito pequeninos raios de estalado. Juntava-se o mármore rosa claro do peitoril da janela para fazer sentir sempre frio.

Como por toda a casa, cabia ali muito mais do que poderia à primeira vista parecer. Devia haver uns poucos pertences da Rosa - como poderiam ser muitos? - e, depois, coisas: ali, acoli e até penduradas acolá. E a dada altura, já mais tarde, juntou-se-lhes de alguma forma o pote do gato.

Aquele não era o meu sítio. Era de certa forma o único domínio da Rosa, e era esse o entendimento mudo da casa. Às vezes, fazia ali chichi, quando a outra casa de banho estava ocupada ou quando a preguiça de ir ao outro lado da casa era mesmo muita. Mas era sempre a correr, com o sentimento de estar a trespassar.

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segunda-feira, janeiro 02, 2017

No quintal 

Um dia, uma prima da Patrícia veio visitá-la. Fomos os três para o quintal da D. Amália - que não era só cimento, tinha também um pequeno canteiro.
Não sei quem se lembrou de querer ver ou mostrar o seu, mas acabei por ver a da prima da Patrícia. Ao contrário dos nossos, para meu espanto, tinha penugem.
Onde estará a senhora hoje, talvez a caminho de ser avó?


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Quintal 

O quintal não era só o quintal. Era, primeiro, o abrir da porta da cozinha para o quintal, que se tinha de fazer tremer e reverberar para fazer mover. Era, depois, o passadiço que ligava as cozinhas da Avó e a da D. Amália, por cima dos pátios de outros dois vizinhos, aos respectivos anexos.

Era uma bela ponte, da largura dos meus braços estendidos, ao longo da qual se podia correr e brincar porque os muros eram altos, ou para mim eram altos. Eram encimados por belos rectângulos de mármore branco, pistas ocasionais para o meu avião azul que nunca me lembro de ter existido com hélice. A corrida terminava rápido, num degrau que dava para um pátio de cimento, do lado esquerdo, e para uma floresta aparentemente indomada, do nosso lado.

Nessa entrada, havia uma outra pequena porta de ferro forjado, também verde, um pouco mais alta do que eu, com uma maçaneta meia solta e amparada por um arame entrelaçado. Dava para uma corredor de lajes irregulares, com um canteiro alto do lado direito, uma videira por cima, árvores e arbustos à esquerda e vasos por todo o lado.

Aqui é que o quintal se tornava mesmo mais do que o quintal. Tornava-se numa exploração pela selva. Era tudo muito; e verde, e denso, e caótico, e havia luz suficiente apenas para desenhar padrões no chão, que ondulavam com o vento.

Avançando em frente chegava-se ao galinheiro, que um dia teve mesmo galinhas, das que botavam ovos e tudo, com enfâse para a parte do tudo, porque faziam aquela parte cheirar ácido.
O galinheiro, frágil estrutura de madeira e rede, encostava-se contra o muro que separava o quintal do quintal do prédio ao lado, e contra o barraco, que fechava o espaço do outro lado.

O barraco era um outro reino, uma realidade igualmente fantástica e nunca verdadeiramente explorada. Era um rectângulo construído em tijolos, reforçado ao longo dos anos com tectos e portas mais sólidas, até parecer uma pequena casa. Uma muito pequena casa, que por dentro parecia apenas poder abrigar um muito estreito corredor, eternamente escuro mesmo sob uma solitária lâmpada incandescente, e sobre o qual pareciam cair os conteúdos das prateleiras. Havia ali um sem número de coisas, duplicando em tons de castanho o que havia em verde no quintal, e em cheiro de pó e humidade, o cheiro da terra e da rega. Uma prateleira, à esquerda, ainda perto da porta (o que havia mais longe era como que inacessível), acolhia o tesouro de alguns livros de quadradinhos do meu tio: três ou quatro números do Major Alvega, Fantasma e Mandrake.

O caminho que permitia à Rosa regar o quintal ainda avançava um pouco mais depois da porta do barraco, acompanhando-o por uns metros em direcção à nespereira. Mas por aí havia menos pedra, mais terra e o verde era ainda mais denso, e raramente me aventurava.

Ficava às vezes mais tempo no quintal da D. Amália. Também tinha um barraco, que acho que nunca vi por dentro, mas em vez de uma floresta, tinha apenas espaço, era um pequeno pátio. Um dia, o Zé Manel, que alugava um quarto na casa da D. Amália, cimentou-lhe o chão todo. Ficou com um ligeiro declive, irregular e, durante bastante tempo pareceu ter uma cor estranhamente esbranquiçada, como se tivesse sido caiado.

Dali podia cheirar-se os bolos da fábrica que alimentava as pastelarias: era divino (uma vez a Avó levou-me lá, acedia-se pelo beco que ligava à praceta, depois do eterno maldisposto resmungão que era o Sr. Bastos - o Bastos da loja de ferragens).

Às vezes, punha-me a olhar para cima, para o segundo andar, a D. Irene do lado esquerdo, por cima da minha Avó, que era o primeiro direito, claro. E para o lado direito, onde vivia o Sr. Seixas, com a D. Ana e os filhos, o Francisco e a Joana. Lembro-me de desejar que o Francisco vivesse mais próximo, do lado esquerdo, para poder ser o meu vizinho de cima, com uma linha directa de ligação, assim, uma recta. A Patrícia vivia ali mesmo ao lado, foi a minha primeira amiga, era um ano mais velha e aprendi a ler com a minha Avó a dar-lhe explicações no quadro grande. O Francisco vivia numa casa desafogada, com aparelhos eléctricos (acho que ainda não havia aparelhos electrónicos), e o pai trabalhava na fábrica de ágar-ágar. E isto bastava para me parecer moderno e fino e livre.

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