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sexta-feira, agosto 13, 2004

Sagrado e profano 

Poder confrontar algumas afirmações da Bíblia com explicações alternativas, concretas, observáveis, ajudou a colocar em causa a infalibilidade, a autoridade do restante texto e permitiu, como libertação, que deixasse de ser tomado literalmente.
Por exemplo, deixou de ser sustentável que alguém de boa fé (interessante expressão) mantivesse que a idade da terra não passava de 6000 anos, quando a geologia indicava 5 mil milhões.

Aqui põe-se o problema da sustentação da ciência como forma de organização do pensamento capaz de ombrear com a teológica: não nasceu assim (e, às vezes, não parece garantido que dessa forma se mantenha).
De facto, foi fácil sobrepor ao heliocentrismo o dogma da centralidade da terra, a mando do papa. Mas a lenta afirmação da ciência como forma de agir sobre o mundo, capaz de demonstrar o seu valor no concreto do quotidiano das pessoas, permitiu que fosse mais e mais respeitada.
A ponto de ser ouvida quando se arrogou a confrontar as leituras e, de forma sistemática e verificável (se bem que não perfeita), desmontar as inverdades.

Este minar da autoridade dos textos sagrados para assuntos do prosaico e temporal, permitiu repensar a perfeição dos restantes dizeres.
Foi possível temperar com humanidade o texto: à partida, por que a autoridade divina parecia ter sido amplamente mediada pela mão muito humana dos escribas; à chegada, porque a leitura contemporânea do texto permitia dar-lhe outros contextos de aplicação.

Assim, a reputação lentamente granjeada pela ciência, reconhecida pelos homens pelos seus resultados no concreto, e a presença nos textos sagrados de afirmações susceptíveis de confronto (i.e., proximamente relacionadas com a realidade física), permitiu o questionar da totalidade dos textos, mesmo na vertente mais espiritual.

De forma interessante, essa libertação dos textos das mentiras literais que carregavam, permitiu que se não conspurcasse a verdade sentida da revelação espiritual pela dúvida associada à realidade física. Talvez tenha permitido ler os textos de forma mais profunda, por menos literal.

Vem tudo isto a propósito da Bíblia. No Corão, dizem-me, há menos registos directamente confrontáveis com a realidade física e, portanto, mais dificilmente questionáveis por outras leituras dessa realidade.
Mesmo que a ciência possa eventualmente ser respeitada pela maioria dos muçulmanos, pela força com que se demonstra e impõe (nem que seja sob a forma de mísseis e armas), a ausência de um historial de dúvida e de separação do que é acessório e do que é essencial, pode dificultar a leitura menos literal dos textos sagrados.
Até porque essa outra forma de ler a realidade, a tal ciência, tem aparecido (não desde sempre, mas nos últimos séculos) associada a infiéis, bárbaros. É aceite à força, pela força.
Não cativando as mentes, não facilita a aceitação como alternativa, como passo para a humanização dos textos e, através dessa intermediação, para o seu recentramento na esfera espiritual.


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