<$BlogRSDUrl$>

sexta-feira, junho 03, 2011

Portugal tuning 

Portugal passou mais de 20 anos a endividar-se. Podia ter-se dado o caso de ter sido com um objectivo conseguido. Podia ter sido que nos tivéssemos endividado ao longo de uma geração para ter ultrapassado, nessa mesma geração, o atraso estrutural que nos separa há 250 anos da Europa desenvolvida. Se tivesse sido esse o caso, estaríamos, a partir de agora e com os nossos filhos a seguir, a pagar uma factura alta mas uma para a qual encontraríamos justificação. Teríamos investido muito, num curto período de tempo, para criar condições e empregos de maior qualidade, capazes de gerar a riqueza necessária para manter e aumentar o nível de vida e para pagar as dívidas contraídas para o alcançar.
Mas não foi este o caso. Não é que se possa desvalorizar o singular desenvolvimento que o país sentiu depois do 25 de Abril ou que se não encontrem exemplos isolados de gastos que sortiram algum efeito e deixaram legado útil e produtivo. O problema é que se sente, justificadamente, que o resultado não foi proporcional ao esforço. Usou-se de uma falsa largueza, esconderam-se os verdadeiros custos, adiou-se o esforço real; escolheu-se sem cuidado e foram demasiados os recursos desbaratados, esfumados em desvarios ou escapados pelos interstícios da máquina que os administrou em nosso nome.
O lobby do betão, os interesses corporativos, a corrupção simples, explicarão grande parte do desbarato. Outra parte ainda dever-se-á à pouca educação, à falta de visão, à tacanhez que vamos preservando da herança salazarista. Eleitos e eleitores, não vimos para além da vaidade da obra, da auto-estrada, do cimento. Foi necessário no início e, depois, quando, malgrado o desperdício, já o era menos, não soubemos que mais fazer. Quando teria sido preciso passarmos para além do óbvio, não deslumbrámos que outros exemplos copiar e perdemos o pouco norte que tínhamos tido. O ministro pediu mais uma ponte, o autarca encomendou um poste de bandeira ou mais uma rotunda, o patrão até renovou as máquinas mas já não foi capaz de contratar um designer qualificado, o trabalhador preferiu um carro maior ou as férias no Brasil a pagar-se um curso profissional. Nenhum o fez apenas por incúria, cobiça ou estupidez. Mas aconteceu mesmo assim. Poderíamos ter feito melhor, deveríamos ter tido mais visão, governância e civismo, ter feito como outros que partiram também de trás, como a Finlândia, o Luxemburgo, a Coreia do Sul. Mas um país é um povo e as suas circunstâncias e nós atingimos o limite daquele, nestas.
Ao longo destes anos, estivemos a fazer, a fiado, tuning ao carro: pagou-se caro, mexeu-se nalgumas coisas mas, na essência, pouco mudou. Os condutores alimentaram vaidades com estética duvidosa e escapes rotos, a expensas de cuidar do motor e dos travões. Para cúmulo, aceleraram até desgovernar o carro.
Nós, conduzidos, fomos mostrando sempre que ainda não queremos ter idade para guiar. Ao longo de 37 anos, permitimo-nos acreditar em algo em que nem um aluno da primária acredita: que podemos ter tudo, trabalhando ou pagando pouco. E os políticos, da elite que rápida e demasiadas vezes se revelou pior que a média, foram alegremente dando e reagindo a este estímulo. Foram-nos dizendo que sim, que era tudo possível. E nós, em troca, fomos dando o nosso voto, alimentando o vício. O Estado cresceu assim, sobre as boas intenções, as inércias e os interesses, sobre os grandes e pequenos roubos e desejos. De todos.
Estivemos todos nisto mas, não surpreende ninguém, as responsabilidades e os benefícios foram distribuídos de forma desigual. Só alguns obtiveram grandes concessões, contratos de favor e sinecuras milionárias. E, agora, acabada a festa, os sacrifícios vão ser ainda mais injustos.
Quem vai pagar os desvarios lucrativos dos bancos vai ser quem nunca ouviu falar de “produtos estruturados” e quem nunca pediu ao gestor de conta uma aplicação com “uma taxa mais interessante”; quem mais os vai pagar será o pequeno aforrador que actualiza a caderneta na Caixa. Quem se vai ressentir da má gestão dos patrões serão os trabalhadores indiferenciados que ganham - ou perdem - o salário já baixo; quem vai sofrer com o malbaratar dos governos serão os mais doentes, os mais pobres, os que vivem mais longe de Lisboa, os que ainda correm a votar; e quem vai arcar com os erros das famílias serão os filhos e os dependentes. Quem vai pagar, pagar com tudo, em impostos e menor qualidade de saúde, educação, trabalho, liberdade e vida, vão ser as próximas gerações.
E esta é, em si, uma mudança historicamente importante. No mundo ocidental do pós-guerra, o crescimento económico susteve a melhoria das condições de vida - e alguma redução das desigualdades - durante 30 anos. Seguiram-se outras três décadas mais em que se continuou a alimentar o modelo social, desta vez a crédito. E agora, em Portugal, esta será seguramente a primeira geração, depois de 1974, que acorda com o pensamento de que os seus filhos viverão uma vida pior do que a sua. E com o peso de ter desbaratado, em luxo e lixo, o que os filhos, futuros adultos com menos futuro, vão agora ter de trabalhar para pagar.

0 comments

Post a Comment

This page is powered by Blogger. Isn't yours?