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domingo, agosto 21, 2016

Contador a gás 

A cozinha tinha um velho contador de gás, vermelho, com dois tubos que o fixavam à parede, ao lado da porta, perto do fogão e impossivelmente alto. Era ali que a minha Avó às vezes fixava a corda onde estendia a roupa para secar no Inverno. Deslizava pela longura da cozinha até chegar algures à parede onde estava a porta que abria para o quintal.
A minha mais antiga memória é a de correr por entre os lençóis estendidos na cozinha, ziguezagueando rente ao chão, a encher-me com riso e com o cheiro de roupa lavada.
Por debaixo do contador, à mesma distância que os sapatos estão do chapéu de um gigante, repousava sempre um pequeno banco, de pernas muito curtas, quadrado, e revestido com um plástico quase do mesmo tom de encarnado.
Ao lado, o degrau de mármore onde estava o fogão, primeiro um branco, com bonitos botões salientes a controlar o silvo que antecipava a explosão do acender e o ai da Rosa que queimava os dedos a tentar poupar fósforos como instigava a Avó, depois um outro, maior e moderno, sem outra distinção.
À frente, a arca, debaixo do que deviam ter sido os armários originais dos anos 40, com um pequeno rectângulo de rede ao fundo e ao meio de cada portinha, para arejamento. A arca, como tudo na cozinha, como tudo na casa - como um pouco tudo na vida da minha Avó, foi com o tempo quase desaparecendo no acumular de coisas sem conta, que a cobriam, escondiam e tornavam um suplício para revelar.
À arca seguia-se um armário artesanal, sem gosto, gavetas amontoadas por detrás de uma porta, e das quais se parecia apenas usar uma, sempre a mesma, para tirar os talheres, que tinham um forte odor de metal. Eram os garfos e facas de todos os dias mas apanhavam o cheiro, se não mesmo o polimento, dos de cerimónia, tudo feito à mão, à antiga, pela Rosa, como os bolinhos de bacalhau, uma colher sobre uma outra, a dançar uma e outra vez para dar forma à pasta que o diabo queria que se amassasse.


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