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quarta-feira, agosto 24, 2016

Quarto da Rosa 

No quarto da Rosa estava o grande quadro de ardósia. Tinha uma certa centralidade, aposto que estava à janela, era a televisão daquela divisão e daquele tempo. Ali, a minha Avó escrevia os números de telefone importantes, antes de a sua profusão tornar o exercício cada vez mais impossível. Havia também datas e um ou outro rabisco que eu pedia para apagar quando queria desenhar na parte de baixo, a seguir à tal agenda de contactos.
No quarto havia uma caixa de costura, grená, rectangular, ela própria costurada em ziguezague ao longo da borda. Era mais uma das muitas coisas da casa para as quais eu olhava, às vezes abria, contentado em remexê-las apenas superficialmente, um misto de receio de não saber voltar a repor e cansaço antecipado de uma tarefa que não valia a pena começar.
Mas havia um sítio onde eu brincava diariamente. Era uma arca de madeira, sem o menor ornamento, pousada no chão debaixo da janela, encostada de um lado à máquina de costura antiga e, do outro, a uma mesa circular, recoberta por um enorme pano até ao pé, que tinha quase do mesmo diâmetro. Eu reclinava-me no chão, encostado ao sacos de roupa que se escondiam debaixo da mesa, e ficava com os olhos exactamente ao nível do tampo da arca. E esta transformava-se assim na melhor rua do mundo, por onde eu fazia correr os meus carrinhos e lhes testava as suspensões e derrapagens vezes sem conta.
Entre a mesa e o armário,escondia-se o saco vermelho escuro, da forma do do Pai Natal, onde a minha Avó guardava a sarapilheira do tapete de arraiolos.
O armário era de madeira escura, ocupava toda a parede, e tanto podia ser um cofre-forte como um portal para outra dimensão, tão poucas as vezes que o vi aberto, e então apenas para revelar, invariavelmente e como tudo na casa, toneladas de casacos, roupa e sacos vários, que tentavam por momentos escapar por entre lufadas de naftalina.
A partir de certa altura, colocaram na parede uma pequena moldura dourada a fingir de antiga. Nunca teve nada que não a fotografia com que veio da loja, um barco no meio de um lago, tudo em fortes tons de verde. Fazia de bom companheiro a um, quando não mais, calendário ilustrado.

Finalmente, havia uma pequena cama de rede articulada que se dobrava completamente, fazendo-se móvel introspecto durante o dia. Simbolizava à vez a leveza da passagem daquele pequeno corpo pela vida e a dureza do acolhimento. Era nesse aspecto mínima e simples a pegada que deixava, e deixavam que deixasse, a ponto de não ter nunca tido, em 60 anos, um local normal para dormir.


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