segunda-feira, janeiro 02, 2017
Quintal
O quintal não era só o quintal. Era, primeiro, o abrir da porta da cozinha para o quintal, que se tinha de fazer tremer e reverberar para fazer mover. Era, depois, o passadiço que ligava as cozinhas da Avó e a da D. Amália, por cima dos pátios de outros dois vizinhos, aos respectivos anexos.
Era uma bela ponte, da largura dos meus braços estendidos, ao longo da qual se podia correr e brincar porque os muros eram altos, ou para mim eram altos. Eram encimados por belos rectângulos de mármore branco, pistas ocasionais para o meu avião azul que nunca me lembro de ter existido com hélice. A corrida terminava rápido, num degrau que dava para um pátio de cimento, do lado esquerdo, e para uma floresta aparentemente indomada, do nosso lado.
Nessa entrada, havia uma outra pequena porta de ferro forjado, também verde, um pouco mais alta do que eu, com uma maçaneta meia solta e amparada por um arame entrelaçado. Dava para uma corredor de lajes irregulares, com um canteiro alto do lado direito, uma videira por cima, árvores e arbustos à esquerda e vasos por todo o lado.
Aqui é que o quintal se tornava mesmo mais do que o quintal. Tornava-se numa exploração pela selva. Era tudo muito; e verde, e denso, e caótico, e havia luz suficiente apenas para desenhar padrões no chão, que ondulavam com o vento.
Avançando em frente chegava-se ao galinheiro, que um dia teve mesmo galinhas, das que botavam ovos e tudo, com enfâse para a parte do tudo, porque faziam aquela parte cheirar ácido.
O galinheiro, frágil estrutura de madeira e rede, encostava-se contra o muro que separava o quintal do quintal do prédio ao lado, e contra o barraco, que fechava o espaço do outro lado.
O barraco era um outro reino, uma realidade igualmente fantástica e nunca verdadeiramente explorada. Era um rectângulo construído em tijolos, reforçado ao longo dos anos com tectos e portas mais sólidas, até parecer uma pequena casa. Uma muito pequena casa, que por dentro parecia apenas poder abrigar um muito estreito corredor, eternamente escuro mesmo sob uma solitária lâmpada incandescente, e sobre o qual pareciam cair os conteúdos das prateleiras. Havia ali um sem número de coisas, duplicando em tons de castanho o que havia em verde no quintal, e em cheiro de pó e humidade, o cheiro da terra e da rega. Uma prateleira, à esquerda, ainda perto da porta (o que havia mais longe era como que inacessível), acolhia o tesouro de alguns livros de quadradinhos do meu tio: três ou quatro números do Major Alvega, Fantasma e Mandrake.
O caminho que permitia à Rosa regar o quintal ainda avançava um pouco mais depois da porta do barraco, acompanhando-o por uns metros em direcção à nespereira. Mas por aí havia menos pedra, mais terra e o verde era ainda mais denso, e raramente me aventurava.
Ficava às vezes mais tempo no quintal da D. Amália. Também tinha um barraco, que acho que nunca vi por dentro, mas em vez de uma floresta, tinha apenas espaço, era um pequeno pátio. Um dia, o Zé Manel, que alugava um quarto na casa da D. Amália, cimentou-lhe o chão todo. Ficou com um ligeiro declive, irregular e, durante bastante tempo pareceu ter uma cor estranhamente esbranquiçada, como se tivesse sido caiado.
Dali podia cheirar-se os bolos da fábrica que alimentava as pastelarias: era divino (uma vez a Avó levou-me lá, acedia-se pelo beco que ligava à praceta, depois do eterno maldisposto resmungão que era o Sr. Bastos - o Bastos da loja de ferragens).
Às vezes, punha-me a olhar para cima, para o segundo andar, a D. Irene do lado esquerdo, por cima da minha Avó, que era o primeiro direito, claro. E para o lado direito, onde vivia o Sr. Seixas, com a D. Ana e os filhos, o Francisco e a Joana. Lembro-me de desejar que o Francisco vivesse mais próximo, do lado esquerdo, para poder ser o meu vizinho de cima, com uma linha directa de ligação, assim, uma recta. A Patrícia vivia ali mesmo ao lado, foi a minha primeira amiga, era um ano mais velha e aprendi a ler com a minha Avó a dar-lhe explicações no quadro grande. O Francisco vivia numa casa desafogada, com aparelhos eléctricos (acho que ainda não havia aparelhos electrónicos), e o pai trabalhava na fábrica de ágar-ágar. E isto bastava para me parecer moderno e fino e livre.
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Era uma bela ponte, da largura dos meus braços estendidos, ao longo da qual se podia correr e brincar porque os muros eram altos, ou para mim eram altos. Eram encimados por belos rectângulos de mármore branco, pistas ocasionais para o meu avião azul que nunca me lembro de ter existido com hélice. A corrida terminava rápido, num degrau que dava para um pátio de cimento, do lado esquerdo, e para uma floresta aparentemente indomada, do nosso lado.
Nessa entrada, havia uma outra pequena porta de ferro forjado, também verde, um pouco mais alta do que eu, com uma maçaneta meia solta e amparada por um arame entrelaçado. Dava para uma corredor de lajes irregulares, com um canteiro alto do lado direito, uma videira por cima, árvores e arbustos à esquerda e vasos por todo o lado.
Aqui é que o quintal se tornava mesmo mais do que o quintal. Tornava-se numa exploração pela selva. Era tudo muito; e verde, e denso, e caótico, e havia luz suficiente apenas para desenhar padrões no chão, que ondulavam com o vento.
Avançando em frente chegava-se ao galinheiro, que um dia teve mesmo galinhas, das que botavam ovos e tudo, com enfâse para a parte do tudo, porque faziam aquela parte cheirar ácido.
O galinheiro, frágil estrutura de madeira e rede, encostava-se contra o muro que separava o quintal do quintal do prédio ao lado, e contra o barraco, que fechava o espaço do outro lado.
O barraco era um outro reino, uma realidade igualmente fantástica e nunca verdadeiramente explorada. Era um rectângulo construído em tijolos, reforçado ao longo dos anos com tectos e portas mais sólidas, até parecer uma pequena casa. Uma muito pequena casa, que por dentro parecia apenas poder abrigar um muito estreito corredor, eternamente escuro mesmo sob uma solitária lâmpada incandescente, e sobre o qual pareciam cair os conteúdos das prateleiras. Havia ali um sem número de coisas, duplicando em tons de castanho o que havia em verde no quintal, e em cheiro de pó e humidade, o cheiro da terra e da rega. Uma prateleira, à esquerda, ainda perto da porta (o que havia mais longe era como que inacessível), acolhia o tesouro de alguns livros de quadradinhos do meu tio: três ou quatro números do Major Alvega, Fantasma e Mandrake.
O caminho que permitia à Rosa regar o quintal ainda avançava um pouco mais depois da porta do barraco, acompanhando-o por uns metros em direcção à nespereira. Mas por aí havia menos pedra, mais terra e o verde era ainda mais denso, e raramente me aventurava.
Ficava às vezes mais tempo no quintal da D. Amália. Também tinha um barraco, que acho que nunca vi por dentro, mas em vez de uma floresta, tinha apenas espaço, era um pequeno pátio. Um dia, o Zé Manel, que alugava um quarto na casa da D. Amália, cimentou-lhe o chão todo. Ficou com um ligeiro declive, irregular e, durante bastante tempo pareceu ter uma cor estranhamente esbranquiçada, como se tivesse sido caiado.
Dali podia cheirar-se os bolos da fábrica que alimentava as pastelarias: era divino (uma vez a Avó levou-me lá, acedia-se pelo beco que ligava à praceta, depois do eterno maldisposto resmungão que era o Sr. Bastos - o Bastos da loja de ferragens).
Às vezes, punha-me a olhar para cima, para o segundo andar, a D. Irene do lado esquerdo, por cima da minha Avó, que era o primeiro direito, claro. E para o lado direito, onde vivia o Sr. Seixas, com a D. Ana e os filhos, o Francisco e a Joana. Lembro-me de desejar que o Francisco vivesse mais próximo, do lado esquerdo, para poder ser o meu vizinho de cima, com uma linha directa de ligação, assim, uma recta. A Patrícia vivia ali mesmo ao lado, foi a minha primeira amiga, era um ano mais velha e aprendi a ler com a minha Avó a dar-lhe explicações no quadro grande. O Francisco vivia numa casa desafogada, com aparelhos eléctricos (acho que ainda não havia aparelhos electrónicos), e o pai trabalhava na fábrica de ágar-ágar. E isto bastava para me parecer moderno e fino e livre.