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sexta-feira, janeiro 04, 2019

O quarto da minha Avó 

O quarto da minha Avó era ali logo à direita de quem entra em casa.
Abria sobre a varanda e carregava idades sem fim na madeira escura, rendilhados e torneados da cama, armário, cómoda e toucador. O armário tinha um espelho de corpo inteiro e o toucador três mais pequenos, todos tocados por uma espécie de ferrugem que não era mais do que leve falha, uma ausência do brilho e da reflexão.
O brilho encontrava-se na fotografia da minha Avó enquanto jovem, uma cara impossivelmente esvoaçante, retocada para ter cor. A reflexão refugiara-se dos anos de vida ali de frente passados e derramados.
Lembro-me de me pentear em frente à primeira metade do espelho grande, tentando fazer desaparecer os caracóis que os outros erradamente elogiavam. Lembro-me de estar doente, acamado com febre, e de pedir à Avó que me apertasse o lenço à volta da cabeça com força, para que me aliviar o palpitar da fronte. Lembro-me de ver um episódio d'Os famosos cinco na televisão grande, imensa de peso e gravidez, dando à luz a preto e branco, trazendo os vultos que vi depois, claramente vistos, continuar a correr sozinhos pelas paredes e ensombrar o quarto.
E lembro-me do estranho interruptor que se mexia como que desenhando um leque para fazer um velho rádio verter, apenas e sempre, melancolia: o Oceano Pacífico, a voz do João Chaves, a Menina estás à janela do Vitorino. E a minha Avó estava à janela, já não era menina, era a minha Avó.

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