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terça-feira, janeiro 15, 2019

Dois títulos 

Tailândia; porque lá fui quando começámos a namorar e para lá fomos na nossa última viagem juntos, e porque a memória que tenho de um entardecer na praia me traz ainda hoje a dor da nossa separação.

Japão; porque se algo acontecer agora, cruzes canhoto, para lá fomos na nossa primeira grande viagem juntos, e lá ouvi o apelo para apreciar a cultura japonesa ("enjoy"), e porque vemos agora um programa em que as vidas se tornam mais leves quando deitamos fora o que "does not bring joy".


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Lutero-Eça 

“If I knew the world was to end tomorrow, I would still plant an apple tree today.", Luther, apocryphal quote.

Carlos e Ega a correr para apanhar o americano quando "não vale a pena correr para nada", Eça de Queiroz, Os Maias.

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Uma boa notícia 

"O tempo passa e todas as decisões se tornam correctas".

Dalai Lama, entrevista ao Guardian, 2003

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domingo, janeiro 13, 2019

Sala 

A sala era um dos sítios onde passava mais tempo. Porque tinha a mesa e porque tinha a televisão.
A mesa era importante porque se podia brincar com os carrinhos e bonecos em cima, desde que se afastasse uma espécie de vaso com as flores de plástico, muito mais pesado do que se poderia imaginar, e se colocasse uma toalha espessa para proteger o tampo. Feito isto, havia espaço e tempo para fazer corridas e preparar guerras.

A televisão estava no canto oposto à janela, que dava para o quintais e de onde se podia ver, à esquerda, a janela do quarto da Rosa. A janela da televisão, essa, dava para as séries americanas que diziam que tudo era possível, para o canal 2, para a mira técnica, para o tédio de não haver distracção garantida, que acabava por me atirar para os brinquedos ou para os livros do quarto do meu tio (uma colecção de capa preta sobre os mistérios do Triângulo das Bermudas, dos OVNIs, e das religiões da suástica).

Havia na sala um sofá individual, que a dada altura foi renovado e já não me servia o corpo da mesma maneira quando me deitava ao través para ver televisão. Nessa parede seguia-se um aparador, parecido com Chippendale (acho eu: tinha linhas curvas, detalhes esculpidos, conchas e pés em pata de leão), tal como o resto da sala e os móveis do quarto da minha Avó. Outro aparador repetia-se na parede seguinte.

A seguir, ao pé da porta da sala, havia uma cristaleira, ou louceiro, que tinha um dente de marfim todo esculpido e dezenas e dezenas de taças. Por cima, o relógio de parede a que era preciso dar corda todas as semanas, subindo acima de uma cadeira para fazer rodar a chave em três buracos diferentes, fazendo soar o mecanismo.

Havia também um piano. Preto, alto, esguio. A melhor coisa do piano era a pista de carros: uma faixa recta e plana que descansava entre as dobradiças do tampo das teclas e a coluna vertical, e onde cabia exactamente um carrinho. Fora isso, não havia muito que fazer com o piano, à parte tocá-lo, o que nunca teria passado pela cabeça de ninguém.

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A casa da minha Avó 

A casa da minha Avó já não existe.
O prédio está lá, o apartamento também, as paredes, presumo, mantêm-se. O sítio da casa da minha Avó existe mas a casa da minha Avó desapareceu.
Não foi com a sua morte, foi um pouco depois, com a morte da Rosa, mas, lá está, desapareceu. Ainda se pensou em mantê-la na família, o que a teria preservado, mesmo numa evolução que certamente a modificaria na forma. Mas a substância teria ficado, e as memórias, e o nomes. Assim, desapareceu mesmo.
Se fosse hoje bater à porta, explicar que queria visitar o lugar onde viveu a minha Avó durante perto de 50 anos, que precisava de uns minutos para olhar para os espaços onde comi, dormi, chorei, brinquei, para ver como estão as paredes e janelas que foram o reino da minha infância, se os corações entendessem e aceitassem o meu convite, seria uma passagem por uma paisagem inteiramente nova, seguramente cheia de gosto e Ikea, impossível de reconhecer. Pior, seria uma demolição real da memória.
Nada disto é novo, nada disto acontece pela primeira vez a casas e pessoas. É apenas novo para mim, a minha Avó só morreu há 10 anos, a Rosa há 8 (será que acerto?), a casa foi vendida logo depois.
O único sítio onde a casa da minha Avó existe é na cabeça dos que por lá passaram e a sua memória é a geografia da saudade.

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Contra o Marcelo brasileiro 

Quando alguém é pobre, é porque tem falta de dinheiro, não de carácter. Quando alguém está doente, é porque tem falta de saúde, não de esforço.

Quando alguém não tem sucesso, não é só falta de trabalho, é muitas apenas o fruto do infortúnio. (Todos estamos mais perto disso do que pode aparentar nos melhores momentos. Sucesso é a recompensa do nosso suor mas também, tantas vezes, da sorte e das oportunidades e apoios que tivemos. Invariavelmente, depende da sociedade e do esforço dos outros. O mais self dos made men usa escolas, hospitais, tribunais, e estradas que não construiu e que melhor ou pior o ajudam no dia-a-dia).

Quando alguém chama a atenção para as consequências sobre todos das acções do Estado ou de cada pessoa (seja obcecar com o que se passa na cama do vizinho, comprar armas, matar animais por desporto ou mesmo para comer, ou favorecer religiões) não é necessariamente proselitismo, pode ser um necessário apelo à responsabilidade, para que cada um reflicta e mude o que deve ser mudado para nos fazer evoluir.

Quando alguém procura calar os que pensam de forma diferente, censurar a televisão, impor fés ou usar o Estado para arranjar um emprego ou se enriquecer, não se pode dizer que é de esquerda ou de direita: infelizmente, ambas o fazem sem saciedade.

Quando alguém da direita faz um vídeo sem autocrítica, humildade ou compaixão, é exactamente tão mau como quando alguém da esquerda o faz.

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sábado, janeiro 12, 2019

A entrada 

A porta de entrada do prédio da minha Avó era dupla, com cada lado dividido em partes desiguais: em cima vidro, até lá muito acima, e em baixo, junto ao chão, metal pintado de verde escuro. Dois tubos verticais dourados e ocos, do tamanho de uma perna, serviam para a puxar e empurrar. O da esquerda tinha mossas e furos no topo. A fechadura ficava absurdamente baixa, obrigando a que se dobrasse as costas para enfiar a chave que invariavelmente era difícil de fazer rodar.
Entrados, e apesar dos enormes vidros, era bom ligar a luz eléctrica, que a natural escapava-se ao fim do primeiro lanço de escadas (o interruptor era antigo, uma semi-esfera achatada, com mola, no meio de um disco de plástico).
Pré-iluminados, subia-se uns dez degraus para chegar ao primeiro patamar. Aí, era possível ver à esquerda a casa da Dona X, andar dois passos para a direita para a casa do Senhor Ernesto, subir para o primeiro andar ou, estranhamente, ir em frente e começar a descer, até à casa da Dona Z, que não tinha janelas para a frente e dava para o quintal mais baixo. O Senhor Ernesto trabalhava na Carris, acho que conduzia autocarros, e era óptimo a assar sardinhas, que oferecia sempre à minha Avó, para minha alegria.
No segundo degrau do segundo lanço de escadas, o mármore tinha uma mancha avermelhada, que era realçada pelo pequeno quadrado de luz que descia da clarabóia. A partir daí, apoiava-me no grosso corrimão, de madeira sólida e trabalhada, puxando-me a força de braços para manter velocidade na subida enquanto a minha Avó ia ficando para trás. Mais uma curva em cotovelo, a parede cinzenta com três pequenas tampas de acesso aos canos encrustadas, olhava-se para cima, estava-se quase em casa.


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sexta-feira, janeiro 11, 2019

Os meus 2 cêntimos 

- Create an inter-generational accounting system that would make it abundantly clear how much of the cost of present living we are leaving for future generations to pay.

- Educate girls in the EU and abroad, as it has a dramatic bearing on global warming via several causal pathways, besides improving health, and wealth, being a social vaccine against inequality, violence and extremism, and a moral imperative.

- Create a comprehensive policy implementation plan for the objective of reversing global warming, noting which R&I and other actions need to be taken (as already identified and ranked in the Drawdown book); make the respect of the plan as a condition to access EU funds in any of its areas; consider absence of action as environmental dumping and therefore as a measure detrimental to the internal market (or an unfair practice in international trade).

- Lack of personal and shared sense of purpose, difficulty to engage for the common good.
- Lack of social cohesion, including weak links between fellow citizens, countries and generations.
- Unfair social inequalities; lack of solidarity.

- Research and experiment on how to best inform citizens of the impact of their action and inaction, on how to best motivate them to work for the benefit of society (including themselves), and on how to empower them so that we can be more demanding of others (governments, industry) but also of ourselves.

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O hall 

O hall de entrada era como que um pequeno quarto que alargava o corredor que vinha da cozinha e ligava o quarto da minha Avó, o acesso aos outros quartos e, claro, a porta para as escadas.
Tinha uma outra porta, que nunca vi ser aberta, que dava directamente para a sala, para o canto onde se encostava a árvore de Natal, a parte mais enternecedora da casa durante as festas.
Ao pé dessa porta, um vaso ornado flutuava num pedestal, uma flor para receber flores. O candeeiro era como que uma flor a abrir, atirando as pétalas longas e douradas para o lado, a rasar o tecto.
Do outro lado do hall, na parede da porta da rua, havia um quadro por detrás de um quadro, um eléctrico, o outro talvez de uma paisagem. Na realidade, podia ter sido a Mona Lisa que nunca teria reparado, aquela pintura era invisível, parte do cenário, do fundo contra o qual as nossas vidas aconteciam, e só teria sido notado se tivesse caído.
Reza a história, mas não o posso confirmar, que um dia ali terei atirado o meu boné para o chão, recusando-me a apanhá-lo, facto pelo qual apanhei uma sapatada.
De resto, havia discussões à entrada todos os dias, com a Rosa a acudir à campainha soltando o trinco lá de baixo e abrindo logo a porta, e a minha Avó a barafustar que o cadeado não estava posto.

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quinta-feira, janeiro 10, 2019

A casa de banho 

A casa de banho era comprida: banheira, lavatório, bidé e sanita em sequência, todos à direita, terminando numa pequena janela alta que dava para os quintais.
Mesmo em frente à banheira, havia um móvel tosco de madeira, baixo, em forma de tijolo, sem ornamentos, e pintado com tinta bege, que a alturas tinha secado em grandes pingos.
Numa das gavetas de cima estavam as minhas colecções: calendários, autocolantes, borrachas, e coisas que tais. A outra guardava os meus Tios Patinhas.
A minha colecção de banda desenhada incluía o nº 2 do Pato Donald em Portugal e uma pequena montanha de Disney Especial, os únicos que demoravam algum tempo a ler, que a minha Avó me comprava resignada na papelaria da Dona Lisete . Muito mais tarde, consegui alargar o meu espólio com a Biblioteca do Escuteiro-Mirim. Para o meu eu de então, tinha a aura de uma verdadeira enciclopédia, completa no âmbito, prática na abordagem, e também mítica, porque referenciada e citada em livros de quadradinhos mas nunca realmente vista até então.
Do trono onde lia e relia toda essa literatura podia ver-se um pouco do quintal e dos prédios em volta. Um pequeno banco de madeira, da mesma família pobre do móvel da BD, era a minha mesa de apoio para os livros ou para os carrinhos ou bonecos.
Uma vez parti lá um frasquinho de vidro que fechava com uma pipeta conta-gotas. Estava a deitar gotinhas de água no tampo do banco, ou a fingir que a pipeta era um foguetão, ou coisa que o valha, e escapou-me da mão. Meia-hora antes o meu tio tinha-me dito: "Podes levar mas tem cuidado para não o partires porque preciso disso".

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quarta-feira, janeiro 09, 2019

O corredor 

O corredor da casa da minha Avó era um "L" caído, característica que lhe ficava bem, numa casa em que tantas coisas eram às avessas.
Do lado mais comprido, podia dizer-se que ligava o quintal, pela cozinha e passando pela sala, à porta da rua e ao quarto da Avó. Aí, virava à esquerda a 90 graus, deixava os quartos do meu tio e mãe à sua direita e levava-nos à casa de banho, ali no final, à esquerda.
A parte que me interessa é esta última.
Era aqui que se encontrava o telefone, que no início era grande, preto, baço e todo muito pesado, com um bocal saliente a proteger o microfone, como que a canalizar o som e a colher cada palavra para dentro da máquina (adequado, porque, como qualquer criança, não gostava de falar ao telefone e era preciso puxar-me a conversa para fora da garganta). Os números marcavam-se rodando o mostrador, que regressava depois à posição original com um barulho de mola. Lembro-me de o fazer mexer muito depressa, puxando o buraco do algarismo a toda velocidade com o indicador, até bater no triângulozinho metálico que servia de travão ao mecanismo; a cada vez, a peça ignorava esse meu esforço e regressava ao início sempre com a mesma exacta lentidão, sem acelerar um nada ao seu passo pachorrento.
Às vezes, à noite e às escuras, ia quase a correr do hall até ao quarto ou até à casa de banho, coração aos saltos até encontrar descanso no interruptor e fazer regressar a luz. Era um exercício mental, uma luta activa, apenas meio vitoriosa, contra o grande medo dos fantasmas.

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terça-feira, janeiro 08, 2019

O quarto da minha mãe 

O quarto da minha mãe foi também o meu, enquanto vivi na casa da Avó e já não dormia com ela.
Não havia muito para fazer lá excepto dormir. Mas às vezes, ia lá também para ouvir a caixa de música da minha mãe, que abria em espelho, mostrava uma bailarina e tocava uma parte reconhecível da "Fur Elise". Era um exercício deliberado em melancolia enquanto os meus pais estavam no Porto.
Os móveis - cama, cómoda, armário - eram de um estilo parecido com o do quarto da minha Avó, mas mais claros, e brilhantes de verniz. Ao lado da cama, já colado à janela (aqui não havia acesso à varanda), repousou durante muito tempo um berço, melhor, uma caminha com guardas altas. Algures debaixo da cama havia malas antigas, que me pareciam de cartão, com tiras de couro e fivelas de cinto.
A cama era enorme para mim, e confortável. Não era sempre quente mas acabava por ficar, se nos fechássemos bem nos cobertores que ofereciam um calor pesado. Se estava mesmo frio, a Rosa trazia uma botija de água quente, que queimava mesmo através da saca, e que era preciso aprender a mexer e rolar perto dos pés. O melhor mesmo era quando a botija já tinha sido posta antes de se entrar na cama, enrolada no pijama. Vesti-lo no gelo do quarto era um prazer em si, aumentado pelo cheiro da roupa aquecida, entrecortado por pequenas escaldadelas.
Lembro-me de os meus primos serem pequenos e me quererem acordar para irmos brincar, e de eu os tentar convencer, sem ninguém acreditar mas em troca de mais uns segundos de olhos fechados, que ainda era noite e que a luz que vinha da janela era apenas a dos candeeiros da rua.

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segunda-feira, janeiro 07, 2019

O quarto do meu tio 

O quarto do meu Padrinho, do meu tio, era o de que eu mais gostava. Tinha ligeiramente menos coisas e sentia-me ali menos claustrofóbico. Lado a lado com o da Rosa e com a sala, era onde passava mais tempo a brincar.
Tinha tido uma carpete azul, toda azul, mas isso tinha já sido, mesmo para mim, há muito tempo. Tinha sido no tempo em que o meu Padrinho tinha lá montado um pequeno comboio eléctrico, mantendo a porta fechada durante horas infindas para me fazer a surpresa. A linha e a locomotiva e as carruagens eram pequenas, claro, mas eram miniaturas de qualidade, não plásticos vulgares de Lineu.
Depois disso, o quarto tinha perdido o atapetado no chão e também a cama, substituída por um sofá. À esquerda da porta, ocupando toda a parede até à janela, permanecia um móvel que juntava armários, estantes e duas portas, nos extremos, que desciam com dobradiças para criar escrivaninhas.
Uma delas, a que tinha autocolantes no interior, à direita, era a que eu podia usar para brincar aos escritórios. Um dos autocolantes era de uma corporação de bombeiros belga. Era o companheiro da viola que estava atrás da porta, lembranças de uma volta à Europa à boleia do meu tio, a que se juntam histórias de amores que reverberam até hoje. Um dos armários de papéis, aliás, tinha poemas, incluindo um dactilografado, em que se brincava com a posição dos versos na folha, com os alinhamentos verticais e com a fita de cor vermelha para criar poesia visual.
Em cima do armário pousava um grande modelo de avião com que adorava brincar. Faltava-lhe apenas um pino no encaixe do suporte, acho que não por minha culpa, e umas lascas de tinta.
No armário havia uma pequena televisão a preto e branco e lembro-me de a ligar para brincar aos grandes: "ver" algo enquanto fumava um lápis e tomava uma bebida.
Na escrivaninha havia um candeeiro metálico, com uma lâmpada incandescente azul que uma vez fiz rebentar ao tentar secar o meu pijama molhado.

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domingo, janeiro 06, 2019

A despensa 

A despensa era um pequeno cubículo ao lado da cozinha. Na realidade, é provável que não fosse assim tão pequena, mas estava cheia a ponto de se não poder ver o fundo, as paredes, ou mesmo o chão, e isso acaba por enganar.
Era para enganar a fome que lá ia buscar, a uma grande caixa, cilíndrica, metálica e florida, os biscoitos em forma de trevo que a avó da Ana Maria fazia em casa.
A avó da Ana Maria vivia quase em frente à minha Avó, do outro lado do rio que teve a certa altura a dúbia honra de ser a rua mais movimentada e poluída de Lisboa. Sentava-se à varanda do primeiro andar e dizíamos-lhe "bom dia" quando passávamos. A Ana Maria era preta, tinha o cabelo em carapinha, e a avó era branca, e tinha-a adoptado, era tudo o que sabíamos, e realmente, para além de quão bons eram os biscoitos, não havia mais que saber.
Com todas as suas cores, a carpete de Arraiolos que a minha Avó estava a coser - e estava sempre a coser uma - era fechada num enorme saco grená. Inicialmente, este ainda acabava na despensa, no único espaço por sorte ainda livre debaixo das prateleiras em forma de ferradura.

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sexta-feira, janeiro 04, 2019

O armário do futebol - um argumento 

A história de um homem de 40 anos que pensa encontrar a missão que lhe pode dar sentido à vida no combate ao último tabu da homossexualidade: o futebol.

Resolve então recomeçar a jogar nos distritais, só para poder sair do armário, procurando iniciar pelo seu exemplo a libertação de milhares de outros atletas, numa vaga de tolerância e inclusão.

Faz isto não por ser gay, que não é, mas apenas porque lhe parece ser essa uma causa justa para a qual pode contribuir, e esperando que um dia a sua mulher possa repor publicamente a verdade desportiva.

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O quarto da minha Avó 

O quarto da minha Avó era ali logo à direita de quem entra em casa.
Abria sobre a varanda e carregava idades sem fim na madeira escura, rendilhados e torneados da cama, armário, cómoda e toucador. O armário tinha um espelho de corpo inteiro e o toucador três mais pequenos, todos tocados por uma espécie de ferrugem que não era mais do que leve falha, uma ausência do brilho e da reflexão.
O brilho encontrava-se na fotografia da minha Avó enquanto jovem, uma cara impossivelmente esvoaçante, retocada para ter cor. A reflexão refugiara-se dos anos de vida ali de frente passados e derramados.
Lembro-me de me pentear em frente à primeira metade do espelho grande, tentando fazer desaparecer os caracóis que os outros erradamente elogiavam. Lembro-me de estar doente, acamado com febre, e de pedir à Avó que me apertasse o lenço à volta da cabeça com força, para que me aliviar o palpitar da fronte. Lembro-me de ver um episódio d'Os famosos cinco na televisão grande, imensa de peso e gravidez, dando à luz a preto e branco, trazendo os vultos que vi depois, claramente vistos, continuar a correr sozinhos pelas paredes e ensombrar o quarto.
E lembro-me do estranho interruptor que se mexia como que desenhando um leque para fazer um velho rádio verter, apenas e sempre, melancolia: o Oceano Pacífico, a voz do João Chaves, a Menina estás à janela do Vitorino. E a minha Avó estava à janela, já não era menina, era a minha Avó.

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